MOVIMENTO LGBT NO PIAUÍ: FATOS E FALÁCIAS
Marinalva Santana*
“Piauí, San Francisco do sertão” (Luiz Mott, decano do movimento LGBT)
“Piauí: a ilha de Lesbos é aqui.” (título de um e-mail enviado por ocasião do 2º Encontro Nacional da Liga Brasileira de Lésbicas, ocorrido em Teresina, no ano de 2007)
As duas frases acima induzem o leitor a imaginar que o Piauí é um paraíso para LGBT e que, de fato, são felizes os LGBTs que vivem aqui. Entretanto, essa falsa premissa sucumbe facilmente diante da realidade vivenciada pelos cerca de 300 mil LGBTs que habitam nossa província.
Aqui, a realidade é árida como o solo do sertão piauiense e triste como a fome do sertanejo. Aqui, os livros de ocorrência dos distritos policiais registram à mão cheia denúncias de discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. A sociedade não se cansa de jogar pedra nas intrépidas Genis e Moniques que derramam o leite mau na cara dos caretas. Em apertada síntese podemos asseverar: em se tratando de violência contra LGBTs, o Piauí não foi tirado do mapa.
O que faz, entretanto, que, além divisas, as pessoas não pensem que o fim do mundo é aqui, nas questões ligadas a direitos de LGBTs? Uma resposta possível é esta: muitas das pessoas que engrossaram a fileira da militância em favor da livre expressão sexual preferiram o caminho árduo da luta diária, da atuação politizada, desafinadora do coro dos contentes, ao invés de refestelarem-se com a sedução dos PTAs, o convescote dos congressos e seminários e os perigosos agrados do poder público. Assim, nadando contra a corrente, alguns poucos militantes do movimento LGBT do Piauí têm feito história...
Enganam-se aquelas pessoas que, de forma incauta, atribuem as conquistas somente a atuações recentes. Em suas pesquisas no Piauí, o Prof. Luiz Mott registra atos de militância que recuam ao século XVIII. Na lição do decano:
“A mais antiga referência explícita à homossexualidade, no Piauí, remete-nos a um casal de lésbicas do século XVIII, exatamente no ano do Senhor de 1758: duas jovens escravas, Josefa Linda, mulata da vila da Mocha e Custódia de Abreu, índia gueguê da Gurgueia, confessam-se perante um emissário da Inquisição em visita pastoral pela Freguesia de Nossa Senhora do Livramento de Paranaguá, que, sob o pretexto de realizarem um ritual diabólico, o famoso ‘sabá de feiticeiras e diabos, praticaram, diversas vezes, ‘atos de sonestos (como) de homem com a mulher nas partes pudendas, na traseira e na boca’. Pediram perdão e, felizmente, para elas nada aconteceu contra essas pioneiras da homossexualidade feminina no sertão piauiense.” (MOTT, 2007)
Nos anos que se sucederam, por certo, muitas outras Josefas e Custódias não se quedaram diante do poder irresistível do falo e ousaram viver seus amores (dizendo ou não o nome), que o digam a Casa de Irene e o Bar da Araci, espaços de sociabilidade lésbica. Saltemos, porém, para o final de 1988, quando alguns gays e umas poucas lésbicas teresinenses tentaram “colocar na pauta da sociedade piauiense a questão das vivências sexuais reprimidas” (MORAIS, 2007). Foi nesse ano que se fundou o Grupo Free, a primeira entidade de defesa dos direitos de lésbicas e gays que se tem registro nestas bandas. Abram-se alas para o depoimento de Soraia Morais, uma das fundadoras do Grupo Free:
“O que o nosso grupo buscava era solidificar um movimento capaz de se posicionar na sociedade piauiense, com características próprias, no sentido de libertar a homossexualidade do viés patológico ou moralista, como também promover e disseminar a idéia de que não era mais tolerável vivermos nossa sexualidade de maneira policiada e marginalizada. (...)
Confesso inconformada, que a idéia não vingou. (...)
O fato é que éramos procurados no sentido de resolver ou atenuar conflitos intersubjetivos ou ambivalências individuais de homens que estavam apaixonados por homens, mulheres que amavam mulheres e que, por esses motivos honrosos, infelizmente era (como ainda são) expulsos de casa. Acabamos nos tornando uma referência terapêutica, ao invés de um movimento político emancipativo.” (MORAIS, 2007).
Com o desfazimento do Grupo Free, imperioso registrar a luta quase que solitária da travesti Monique Alves. Superando todas as adversidades, Monique idealizou o Grupo Homossexual Babilônia e ainda na década de 90 já ousava produzir boletins com certa periodicidade, denunciando a discriminação contra LGBTs. Em 2001, por exemplo, os boletins do Babilônia foram a principal fonte de informação de que teve acesso o Prof. Luiz Mott para traçar o mapa dos crimes homofóbicos no Piauí.
Em 2002, a sozinhez de Monique Alves pereceu. Sua indignação, seus desejos, necessidades e vontades se juntaram aos de outras pessoas (lésbicas, gays e bissexuais). Assim, em 18 de maio de 2002, estava fundado o Grupo Matizes. O parto temporão se deu após quase dois anos de gestação, marcada por muitas reuniões, discussões acirradas e construções coletivas. Viva a teimosia de Maria Aires Chaves!
Apesar de ter surgido em uma época na qual a sofreguidão por verbas públicas levava a maioria dos Grupos LGBT a se vincularem umbilicalmente à questão da luta contra a AIDS, o Matizes preferiu enveredar por caminho diverso e priorizar suas ações na linha do reconhecimento de direitos. Andar por essa trilha, pressupõe a disposição de travar embates e provocar debates. Às vezes, é necessário endurecer. Às vezes, contemporizar. O que não pode é se acocorar diante daqueles que detêm o poder e que nos oprimem. Essa opção não rende PTAs, milhas acumuladas, estada em hoteis de luxo, nem tampouco DAS em órgãos públicos, mas contribui para politizar o debate sobre as homossexualidades e as questões de identidade de gênero.
Várias conquistas podem ser elencadas nos últimos anos. Talvez sejamos o Estado do Brasil que mais possui leis reconhecendo LGBTs como sujeitos de direitos. O Judiciário já disse sim às nossas demandas em várias oportunidades. Foi através de um grito do “San Francisco do Sertão” que o Brasil reavivou o debate sobre a esdrúxula proibição da ANVISA para doação de sangue por homens gays e bissexuais. As leis, as decisões judiciais, as ações afirmativas de órgãos do Executivo, registradas nos últimos 08 anos têm, de alguma forma, uma influência da atuação do Matizes, mas só foram possíveis porque outrora existiram anjos tortos, que “freemente” ousaram viver seus amores sem medo, desafinando o coro dos contentes com a heteronormatividade compulsória.
Se o Grupo Free era uma “ebulição clandestina” (MORAIS, 2007), o Grupo Matizes tem sido uma efervescência escancarada. E essa ação militante, tão às escâncaras, talvez seja um dos fatores que contribuem para o surgimento de várias outras entidades que levantam a bandeira do arco-íris. Apesar de se correr o risco de omissão de alguma entidade, é importante registrar os municípios que já contam com grupos LGBT: Barras (Babaçu Rosa); Cajueiro da Praia (GRUVCAP); Esperantina (Arco-íris dos Cocais); Floriano (AFLODS); Parnaíba (Gaurá e Grupo de Lésbicas de Parnaíba); Pedro II (Rede Arco-íris); Picos (Glos LGBT); Piripiri (Grupo Gay de Piripiri); Teresina (Articulação de Travestis do Piauí; Articulação Piauiense de Travestis e Transexuais; Coletivo de Gays Mirindiba, Coletivo de Lésbicas Apoena).
Essas várias entidades surgiram e se organizaram no momento em que o Piauí era administrado por um governador petista, que se auto-intitulava governo democrático popular. Uma análise alimentada pelas relações perigosas à base de DAS e PTA’s certamente concluirá que essa multiplicação de entidades nos vários municípios do Piauí é resultado dos ares democráticos do suposto “Governo Democrático e Popular”. Já uma análise feita por quem não teve a consciência comprada com mimos e cooptações destaca que esse crescimento quantitativo tem a ver com um quadro se esboça em todos os Estados do Brasil, com o surgimento frenético de grupos LGBTs. Na verdade, o que se viu no Piauí nos últimos anos foi uma despudorada e insaciável tentativa do Governo (?) de silenciar a sociedade civil organizada, através do aliciamento de lideranças e também o assédio moral e a desqualificação sistemática daquelas lideranças e das entidades que mantiveram uma postura crítica e autônoma.
Ao comentar o comportamento de “setores de esquerda” quando ocupam o poder, Célio Golin, militante do movimento LGBT gaúcho, presenteou-nos com uma lição lapidar, que se amolda bem à realidade piauiense dos últimos oito anos :
“Alguns setores da esquerda antes de chegar ao poder defendem a independência do movimento social frente ao Estado e partidos. Quando chegam ao poder, tentam de todas as formas atrelar o movimento social ao Estado e aos políticos, comprometendo a própria democracia e defendendo, mesmo que não assumidamente, um Estado único. Chegam ao cúmulo de proporem em nome do movimento social. Esses mesmos setores que se dizem comprometidos com os homossexuais, quando deparados com uma discussão mais aprofundada e não eleitoreira, demonstram com seus argumentos ideias conservadoras, muito parecidas com os argumentos da direita. E o que é pior, suas práticas políticas são exatamente as mesmas da direita. Ajudam, condicionando o apoio. (...)
Infelizmente o próprio movimento social do país vai em busca desse tipo de relação, não refletindo sobre qual papel deve ter frente ao Estado. Com essa postura compromete a própria relação de independência que a sociedade civil deve ter frente a partidos e Estado.” (GOLIN, 2002)
Golin aponta o dedo na ferida. Apesar de propalar aos quatros cantos que o movimento LGBT “é a bola da vez”, forçoso reconhecer que a militância alienada, acrítica e aparelhada por partidos é a regra no seio das organizações de LGBT.
Investir na formação política de seus militantes é um dos desafios para todos os grupos organizados em nosso Estado. O discurso da vitimização, tão forte na militância LGBT, não mais encontra eco na sociedade. É preciso perceber que nossa luta é legítima não porque somos coitadinhos/as, mas por sermos sujeitos de direitos – e esses direitos nos serem negados pelo Estado.
Infelizmente, ainda assistimos a equívocos inaceitáveis na atuação de muitas entidades de LGBTs. O reducionismo de sempre associar as ações à questão da AIDS é um deles. Com isso não se quer dizer que a luta contra a AIDS e as ações de prevenção são desimportantes. É óbvio que esse pode ser um dos focos da atuação. Transformá-lo, porém, em foco único ou prioridade absoluta é ignorar a situação de violência e negação de direitos a que são submetidas as pessoas LGBTs em nosso País e, especialmente, no Piauí.
Com a eleição de um novo governador do Estado, ainda não se sabe se o relacionamento deste com as organizações da sociedade civil será de promiscuidade, aliciamento ou de desprezo, desrespeito. É certo, porém, que ao movimento LGBT do Piauí está posto um desafio: o de enveredar por outra trilha, em que possa caminhar de forma livre, autônoma. Somente essa opção é capaz de transformar as várias ações afirmativas hoje existentes em políticas públicas de fato. Somente essa opção é capaz transformar o faz de conta do Estado em ações efetivas para o combate ao preconceito e ao enfrentamento da discriminação.
REFERÊNCIAS:
GOLIN, Célio. Aonde não queremos chegar: uma reflexão sobre nossas práticas políticas. In: GOLIN, Célio; WEILER, Luis Gustavo (orgs.). Homossexualidades, cultura e política. Porto Alegre: Sulina, 2002.
MORAIS, Soraia. Grupo Free: uma ebulição clandestina. In: BARROS JR., Francisco de Oliveira; LIMA, Solimar Oliveira (orgs.). Homossexualidades sem fronteiras: olhares sobre o Piauí. Rio de Janeiro: Booklink, 2007.
MOTT, Luiz. Homofobia no Piauí: 1975-2007. In: BARROS JR., Francisco de Oliveira; LIMA, Solimar Oliveira (orgs.). Homossexualidades sem fronteiras: olhares sobre o Piauí. Rio de Janeiro: Booklink, 2007.