“As heroínas da comunidade lésbica não usam fantasias e sobrevoam prédios altos, elas lutam e sangram nas trincheiras da ação política. Elas são mulheres comuns que ajudam outras lésbicas que nem sequer conhecem”, disse certa vez a artista lésbica canadense Sue Molyneaux. Marinalva Santana, 43 anos, é uma heroína da comunidade lésbica brasileira, e sua biografia só comprova isso.
Marinalva nasceu numa família de nove filhos, seis homens e três mulheres, no interior do Piauí, em São Raimundo Nonato. Os pais tinham uma roça em Anísio de Abreu e uma loja de variedades, onde a pequena Marinalva começou a trabalhar aos sete anos de idade. Ela tinha dois irmãos homens mais velhos, mas era considerada a mais “centrada”, então tomava conta do comércio quando os pais não estavam. “Em uma sociedade machista como a nossa, as mulheres assumem responsabilidade mais cedo”, diz. Quando tinha 12 anos, a família resolveu se mudar para a capital no estilo nordestino: tudo e todos viajando na traseira de um caminhão em busca de melhores oportunidades em Teresina. Educação de qualidade para os filhos era a prioridade dos Santana.
A escola particular de Teresina era difícil para uma aluna acostumada com o ensino público de Anísio de Abreu, mas Marinalva sempre foi aplicada. No ano seguinte, já figurava entre os cinco alunos premiados com melhor rendimento escolar anual, como faria até terminar o ensino médio. Difícil mesmo era controlar a entrada dos bêbados na churrascaria do seu pai, usada para festas no final de semana. Às vezes os bêbados ficavam violentos, mas Marinalva, com apenas 14 anos, os enfrentava sozinha.
Dois anos depois é que viria um desafio realmente difícil de enfrentar, dentro e fora de casa: Marinalva se descobriu lésbica ao se envolver com uma colega de classe. Elas se apaixonaram e não conseguiram esconder o caso, com o turbilhão de emoções da adolescência. Só que eram os anos 1980 e, se hoje ainda é difícil sair do armário por causa da família, naquela época era bem pior. Marinalva diz que, diferente de outros grupos discriminados, a comunidade LGBT sofre rejeição já dentro de casa. Mulheres lésbicas muitas vezes são extorquidas para serem aceitas pela família, sofrem estupro corretivo ou são até internadas em hospitais psiquiátricos, conta ela.
Felizmente, não foi seu caso. Mas não foi fácil. A família percebeu que Marinalva era lésbica, e não soube como reagir. Os pais tiveram muita dificuldade em aceitar, os irmãos faziam piadinhas, aproveitando o hit da época “Maria Sapatão”, do Chacrinha. A sexualidade era clandestina. Os colegas olhavam atravessado na escola. Poucos amigos ficaram. Paralelamente, Marinalva começou sua militância no movimento estudantil, liderando o grêmio da escola. Logo depois, começou a cursar Letras – Português na Universidade Estadual de Teresina, onde também militou no movimento estudantil. Mais de dez anos se passaram até ela finalmente se sentir completamente representada em um movimento, fundando o Matizes, a primeira organização civil do Piauí que luta sistematicamente pelos direitos da comunidade LGBT. “Eu já havia militado no movimento estudantil e sindical, mas eu não me visibilizava, não me identificava como pessoa. Quando você não é assumida, não vive com tranquilidade sua sexualidade, você vive se angustiando, até dissimulando por conta dos medos e quando você tira esse peso, você começa a ter outra vida. A militância foi um divisor de águas, eu me livrei das culpas e a convivência familiar melhorou muito. Não fiquei mais vulnerável a chantagens”, diz.
Discriminação interna
A militância do passado de Marinalva colaborou para um olhar mais aberto do Matizes, atento à pautas feministas com a luta pelos direitos das mulheres. Em 2007, o Matizes se uniu ao grupo Católicas pelo Direito de Decidir e, juntas, exigiram o serviço de aborto legal na rede pública de saúde. “Nós sempre abraçamos pautas feministas e eu me considero uma lésbica feminista. Quando o movimento LGBT tem um olhar feminista ele ganha muito”, diz. O efeito colateral disso foi que o Matizes enfrentou violência de gênero de outros membros do movimento LGBT. Marinalva explica que, na maioria dos casos, os movimentos LGBTs são protagonizados por homens, e muitos trazem marcas fortes do machismo. O recalque pela liderança lésbica do Matizes rendeu um apelido de gays que não aceitam Marinalva e suas colegas de militância: “sapas malditas”. Nada que realmente atrapalhe o movimento, um grupo misto com membros gays, lésbicas, travestis e transsexuais, algo não tão comum no Brasil, onde cada “categoria” se divide em diferentes organizações.
Piauí, do 8 ao 80
Formada em Direito e analista do Tribunal de Justiça, Marinalva sabe como o sistema funciona. Ela usa seu conhecimento para exigir os direitos civis da comunidade LGBT em um dos estados mais conservadores do Brasil – e tem conseguido certo sucesso. O Piauí é o quinto estado brasileiro que mais registrou assassinatos contra gays, lésbicas, travestis e transsexuais em 2011, segundo o Relatório sobre a Violência Homofóbica no Brasil, de 2012. Também é o quinto estado que mais denuncia as agressões, segundo o mesmo relatório. No ano passado, foram 13 mortes no estado com três milhões de habitantes. É uma taxa absurda mesmo para o país campeão mundial de crimes homofóbicos. Somente em 2013, 40% dos assassinatos de transexuais e travestis aconteceram no berço esplêndido. Segundo o Grupo Gay da Bahia, um gay é morto a cada 28 horas no Brasil. Todo ano, mais de 300 gays, travestis, lésbicas e trans são assassinados.
No entanto, graças à atuação do Matizes e de outras organizações LGBT que surgiram depois, o Piauí se tornou esse estado complexo que equilibra números opostos. É um dos estados mais perigosos para homossexuais e trans, mas também tem o maior arcabouço legal reconhecendo os direitos dos LGBT. Foi o primeiro estado do Brasil em que o contribuinte da Receita Federal pôde incluir o companheiro ou companheira na declaração do Imposto de Renda. O Matizes também questionou, junto ao Ministério da Saúde, a proibição a homens gays e bissexuais de doarem sangue e pressionou a Justiça do Piauí a converter uniões afetivas em casamento. O Piauí também tem várias leis pró-LGBT, como sanção administrativa a estabelecimentos onde aconteça discriminação por orientação sexual, punição de discriminação por orientação sexual em nível estadual e reconhecimento de nomes escolhidos por transsexuais e travestis, lei não sancionada pelo governador Wellington Dias (PT). Também foi o primeiro estado em que uma criança foi registrada com os nomes das duas mães.
Marinalva também balançou o estado ao pedir a separação entre estado e igreja no “laico” Brasil, ou a retirada de símbolos religiosos em prédios de administração estadual e municipal. Ela ainda não ganhou essa luta, mas vai ser lembrada como uma mulher lésbica que consegui trazer organizações católicas e de pastores evangélicos para discutir a questão em um dos estados mais conservadores do país. “Os argumentos jurídicos são fundamentais para você protocolar uma representação junto ao ministério público. As pessoas não entendem, acham que é coisa de gente endemoniada, então se você não tem argumentos do ponto de vista jurídico ou filosóficos você não vai conseguir ser convincente e pode ser alvo de chacota”, explica. As conquistas do Matizes ganharam espaço na imprensa e colaboraram para a realização de uma parada da diversidade épica encerrada com um show da Daniela Mercury para 100 mil pessoas em 2013.
Mas toda visibilidade tem um preço. O do Matizes foi virar alvo de ataques homofóbicos. A chamada Irmandade Homofóbica, um grupo de inspiração nazista, ameaça LGBTs e feministas de morte em Teresina – inclusive Marinalva. Em fevereiro, cartazes espalhados por Teresina convidavam interessados a integrar a Irmandade Homofóbica, com telefone de contato em tudo. Um mês depois, enquanto o Batuque Feminista preparava a terceira edição da Marcha das Vadias, as mulheres passaram a receber ameaças pelo Facebook. Comentários incentivaram estupro das ativistas, levando a polícia a aumentar a segurança na manifestação. Marinalva denunciou o grupo na imprensa e imediatamente virou alvo de ameaças, com uma foto sua postada no perfil do Matizes no Facebook com a frase “tu vai morrer”. Em junho, o presidente do Conselho Municipal LGBT de Teresina recebeu mensagens de celular dizendo que todos os membros do conselho seriam eliminados. A polícia chegou a colher depoimentos de jovens que fizeram comentários na página da Irmandade Homofóbica, quebrou sigilos telefônicos e do IP para identificar os autores, mas, até agora, não houve nenhum resultado, de acordo com Marinalva, que parou de dar aulas à noite e teve que mudar o local de reuniões do grupo.
O titular da delegacia, Francisco Sebastião Escórcio, afirma que este ano a violência contra a população LGBT no estado aumentou. Foram feitos no primeiro semestre 40 boletins de ocorrência de injúria, agressões e notificações de chantagens. “Estamos acompanhando de perto essas ameaças”, diz. Mas, segundo Marinalva, até agora, nada foi concretizado. “A polícia instituiu um inquérito, mas não dá resposta, não identifica os responsáveis e estamos aqui cada vez mais vulneráveis e assustadas”. É que as heroínas também são feitas de pele e osso. E nós exigimos Justiça no Piauí.
Foto: Gabriel Tôrres/CT
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